O Frade e a Pega

(Um frade sentado no chão de uma ermida. Tem o corpo sereno, mas o espírito apreensivo. Pensando ter ouvido algo, levanta-se e vai à janela procurar a fonte do som. Nada. Regressa para onde estava. Antes de se sentar, volta um pouco atrás e perscruta de novo o horizonte, com menos esperança.)

talvez tenha sido por alguma necessidade de silêncio que para aqui viemos mas

um homem precisa 

de vez em quando 

de algum ruído

alguma agitação

um sussurro que seja

algum

alguma voz

para se sentir acompanhado

para se sentir 

compreendido

mas enfim a vida

quer-se difícil

nem os religiosos se escapam disso

falo de boca cheia e

vida simples

oito horas de oração por 

dia

alguma recreação pelo meio

um luxo

eu gosto da comunidade

é sem dúvida 

a forma ideal de alcançar Cristo

mas o silêncio em conjunto por vezes torna-se

não sei

tanto eu como os meus irmãos sentimos alguma 

atração 

pela solidão

ou não teríamos vindo para onde nos é proibido conversar

falar

não temos chicotes apontados às costas portanto

se cá estamos

é porque sentimos desejo

pelo deserto

por suportar em conjunto a solidão

uns gostam mais que outros

talvez por isso tenham chegado à ideia de 

construir ermidas

para aqueles de nós que preferem estar calados

menos ruidosamente

entre 1630 e 1660

construíram-nas quase todas

para um retiro mais profundo dos frades da Mata

que já de si 

já é suficientemente profundo diga-se

aprofundar a nossa relação com Deus sem

o rame-rame da conversa

é temporário

claro

não a relação com Deus

os retiros 

é que são temporários

era o que eu queria dizer

uma pessoa quando tão pouco fala

enfim

aqui leio melhor

gosto disso

na verdade leio o mesmo mas parece que rumino melhor 

a palavra de Deus

é uma experiência espiritual

deixarmo-nos afundar na paz da surdez da mudez

escavar a palavra de Deus e

encontrá-l’O

Deus aqui te trouxe Deus aqui te mantém

e nos momentos em que não o encontro

rezo

e espero 

que ela volte

aos domingos não há retiros para ninguém

há missa no convento e todos os frades têm que estar

nos outros dias

bem

não é muito diferente

oramos ao mesmo tempo que os nossos irmãos

que estão no convento

há muito silêncio nas ermidas mas também muito barulho

de sinos do campanário

que tocam para regular a vida dos ermitões com a vida no convento

um luxo

eu aqui

basta tocar a sineta e eles ao fundo já sabem

olha aquele está longe mas não está a dormir nem a brincar

está a rezar

trazem-nos comida duas vezes por semana

o prior do convento visita-nos

confessa-nos

apoia-nos espiritualmente

um requinte

para quem olha parece uma cela mas

é uma bênção é o que é

há lenha que me aqueça e que me aqueça o jantar

pão fruta legumes

peixinho e carninha nada

não se pode

carne então nem no convento quanto mais aqui

é pena

mas há uma fonte de água aqui perto como aliás todas as ermidas têm

portanto

não peço mais nada

também se pedisse não adiantava muito

mas não peço na mesma

não vá o prior chatear-se ainda mais 

comigo

também podia pedir para me deixarem ver 

algum familiar mas 

ia ter a mesma resposta

uma vez por ano para ver a família

ainda hei-de dar a ideia de serem três

a conta que Deus fez 

eles vão gostar

três vezes por ano por cada parente

vinha a calhar

pelo menos teria mais hipóteses

de a encontrar 

lá fora

creio que eventualmente 

alguns dos frades se terão fartado de certas e determinadas imposições porque

procuraram certas e determinadas formas de as contornar

até o silêncio

há sempre formas de contornar 

aquilo que não se quer fazer

mas independentemente dos privilégios que se tenha fora daqui

cá dentro cada um age como cada qual

agora para lá dos portões

é outra história

para lá dos portões

imagino que as pessoas se perguntem sobre

qual será o voto mais difícil de manter

pobreza castidade obediência

castidade 

suponho 

que seja o que pensam

eu diria

obediência sem dúvida

sem dúvida um voto mais duro que o da castidade 

aos religiosos 

e a qualquer pessoa agora que penso nisso

não é necessário um vínculo a dois para 

para serem felizes

ou pelo menos para se sentirem

felizes

pensa no que perderás com uma vida de frade dizem eles

pensa no que perderia com uma vida de casado respondo eu

a obediência 

sim

difícil de engolir por vezes

perder a vontade própria

estar lá para os meus irmãos quando por vezes não quero sequer 

estar

o hábito que vestes é para o resto da tua vida

o que é um período de tempo

aceitável

mas os dias tornam-se compridos quando amamos 

alguém

e sobretudo

quando julgamos que alguém nos ama

(Vai à janela. Volta. Detém-se. Vai à janela. Imita um pássaro.)

disse-me o prior 

que eu era maluco

palavras dele

até me cuspiu um bocadinho ao falar talvez para dar ênfase

um homem profundamente desequilibrado disse ele

por conversar com uma 

ave

uma pêga 

que eu andava a criar

e achou-me sobretudo

maluco por eu ter ensinado a mesma ave a falar

não me pareceu grande crime na altura mas

castigou-me claro

as suas ações transgrediram todas as nossas leis

é

mas um homem 

pelo menos de vez em quando

precisa de alguma 

como é que era

voz

e assim como assim

tem piada

porque depois de me chamar maluco virou-se

para a pêga

e começou aos berros

NUNCA DEUS QUEIRA QUE POR TI SE QUEBRE 

NESTE SANTO LUGAR

O QUE ATÉ AGORA PERSEVEROU INTEIRO

EM VIRTUDE DO MESMO SENHOR TE MANDO QUE NEM TU NEM INDIVÍDUO ALGUM DA TUA ESPÉCIE

TORNE MAIS A ENTRAR NESTE SÍTIO

pensei que estava a falar para mim

não reparei que se dirigia ao pássaro

apeteceu-me dizer-lhe

AI ISTO NÃO ERA PARA ESTARMOS CALADOS?

mas controlei a raiva e o que me saiu foi um

sr. prior 

já cá não está quem falou 

cá estou

não de castigo mas porque há alturas em que

o silêncio em conjunto

ensurdece

Deus não se pronuncia através do medo mas sim através do amor

pensava eu

a verdade é que

desde que aqueles berros lhe saíram pela boca

mais nenhuma pêga se dignou a entrar na Mata do Bussaco

esperam fora dos portões

provavelmente à espera de permissão do prior ou

um pedido de desculpas

já cá não está quem falou

agora que penso

talvez não lhe tenha dito 

isso

em voz alta pelo menos não disse 

só pensei

o que é natural

uma pessoa quando tão pouco fala

já não distingue entre o que diz e o que pensa

acima de tudo perde menos tempo a dizer disparates

sobretudo disparates como 

já cá não está quem falou